O tema da Campanha da Fraternidade deste ano, “Economia e Vida”, e seu lema, “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24) tem implicações claras para a ética social. O amor exagerado ao dinheiro está na raiz de injustiças sociais, misérias, desonestidades, violências e insensibilidades diante dos sofrimentos do próximo, degrado ambiental e morte; por isso, o apelo à conversão quaresmal tem fortes implicações para o nosso comportamento social. Nossa ação de discípulos de Jesus Cristo deverá ajudar a marcar as relações econômicas com a ética da solidariedade e da fraternidade, em vez da lógica do lucro ávido; a busca esforçada do bem comum deve tomar o lugar da afirmação individualista do bem pessoal.
O tema da Campanha, porém, também traz à nossa reflexão uma questão que nunca deve ser esquecida: em que consiste o verdadeiro bem do homem? Entre os muitos bens acessíveis e legitimamente desfrutáveis, algum é o bem supremo que não poderá ser trocado por nenhum outro? Esta questão, que tem implicações fundamentais para a vida pessoal e a fé em Deus, perpassa toda a Bíblia e merece mais de uma observação de Jesus nos Evangelhos. A pensar bem, a questão também é posta por quase todas as religiões que identificam, geralmente, no apego às riquezas deste mundo um perigo para a fé em Deus; é verdade que alguma forma de religiosidade também pretende colocar Deus a serviço da aquisição de bens, através de certa “teologia da prosperidade”; mas tenhamos a certeza disso: usar Deus para fazer dinheiro ou para prometer bens aos outros é, claramente, desrespeitoso e blasfemo em relação a Deus.
A palavra de Jesus – “não podeis servir a Deus e ao dinheiro” faz referência direta ao primeiro mandamento da Lei de Deus: “Não terás outros deuses fora de mim; amarás o Senhor, teu Deus, e somente a ele servirás”. Servir ao dinheiro é colocá-lo no lugar de Deus, passando a dar-lhe mais atenção que ao próprio Deus; e o dinheiro é transformado em ídolo. Ainda no sermão da montanha, Jesus ensina os discípulos a serem sábios durante a vida e a buscarem tesouros verdadeiros, e não aparentes: “Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, ajuntai para vós tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, nem os ladrões assaltam e roubam. Onde está teu tesouro, aí também está teu coração” (Mt 6, 19-21).
O cristão e toda pessoa de bom senso não deve colocar sua segurança nos bens que possui. Jesus adverte contra todo tipo de ganância, que é a busca ávida dos bens; e conta a parábola daquele homem rico, que fez uma colheita muito abundante e pensou: “agora posso ficar tranquilo, tenho reservas para muitos anos e vou gozar a vida...” E Jesus diz que aquele homem foi “insensato”, ou seja, sem juízo: “naquela mesma noite ele morreu; e toda a riqueza que ajuntou, para quem ficou? Coisa semelhante acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não se torna rico para Deus” (cf Lc 12, 13,21).
Também o sábio do Antigo Testamento, que avaliava todas as coisas a partir do horizonte de sua fé e confiança em Deus, já advertia contra a ilusão das riquezas: “Por que temer os que confiam nas riquezas e se gloriam da abundância de seus bens? Ninguém se livra da morte por dinheiro, nem pode pagar a Deus o seu resgate; por nenhum preço dá para livrar-se da morte e por nenhuma riqueza poderá o homem comprar-se uma vida sem limites, ou assegurar para si uma existência imortal; morrem os sábios e os ricos igualmente; morrem os loucos e também os insensatos; e todos terão por casa uma sepultura...” (cf Sl 48 (49), 6-12). Nada se leva deste mundo, tudo se deixa para trás, a não ser os “tesouros” acumulados no céu durante esta vida.
Naturalmente, o problema não está nos bens, enquanto tais; a visão de fé sobre a vida nos faz acolher e apreciar, com simplicidade e gratidão a Deus, os bens colocados à nossa disposição pela natureza, ou aqueles conseguidos através do trabalho honesto. O problema, de um lado, é saber se a posse dos bens foi legítima e não lesou o direito e a dignidade de ninguém. Por outro lado, importa ver nossa atitude em relação aos bens: se eles se tornam o valor supremo de nossa vida e, por eles, somos capazes de sacrificar qualquer outro bem, quer dizer que eles tomaram conta de nossa vida e passamos nós a ser servidores deles, em vez de estarem eles a nosso serviço. Aqui começa a idolatria dos bens, pois o próprio Deus, sua lei e seus mandamentos, ficam em segundo plano diante das “exigências” desse ídolo. Sem falar dos irmãos, que se tornam vítimas nessa idolatria...
Por isso, a Campanha da Fraternidade nos faz rever nossas atitudes em relação ao dinheiro e aos bens deste mundo; que eles sirvam à nossa vida e ao bem comum, para conviver em fraterna solidariedade com os outros. Isso requer conversão contínua."
Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
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